Organizada por
professor da USP, 'Borges babilônico' traz mais de mil verbetes
POR DANIEL SALGADO
RIO - As obras de Jorge Luis Borges são abrangentes,
universais. Viajam por pampas argentinos, visitam mesquitas de Córdoba, adentram
palácios imperiais da China e evocam, em certa medida, o objeto que dá nome ao
seu conto mais famoso: o Aleph, a esfera achada num sótão de Buenos Aires que
permite observar o mundo inteiro e gera mais perguntas do que respostas sobre o
que revela.
Por isso, as páginas de seus contos, ao mesmo tempo
independentes e dialogando entre si, são uma viagem rumo ao desconhecido. É
para ajudar os desbravadores a adentrar mais profundamente na mente do
argentino que surge “Borges babilônico”, uma enciclopédia que se propõe a
mapear as pessoas, os lugares e conceitos tão caros como referências ao autor.
O projeto reúne mais de mil verbetes sobre a produção
literária de Borges. Não é tarefa fácil, tratando-se de uma obra tão dada ao
mistério, que repetidamente apaga a linha entre real e ficcional. Obras de um
autor que, citando Marco Polo, reforça sua visão de que “o real não é mais
verdade do que o inventado”.
Para completar a hercúlea tarefa, Jorge Schwartz, acadêmico
da USP que lecionou cursos sobre Borges ao longo das últimas décadas, elencou
mais de 60 colaboradores. São especialistas brasileiros e estrangeiros, como
Júlio Pimentel e Beatriz Sarlo, e até autores como o argentino Ricardo Piglia.
— São verbetes curtos e longos, alguns quase pequenos ensaios.
Mas com uma condição: todos tratam, sem exceção, de Borges. Uma coisa é
explicar quem foi um filósofo do Renascimento. Isso se encontra pela internet.
No livro, você vê como a obra dele (do filósofo) foi digerida e interpretada
por Borges — explica o organizador, que contou com a ajuda de Maria Carolina de
Araújo na organização editorial do projeto.
A ideia do livro passou por uma longa gestação, e teve
início quando Schwartz supervisionou as traduções das obras completas do
escritor argentino no fim da década de 1980.
— Recebemos uma restrição: não podíamos fazer notas de
rodapé explicativas, o que deixou uma montanha de esclarecimentos e consultas.
O impedimento acabou virando um estímulo para fazer o que seria um pequeno guia
de leitura para Borges no Brasil — conta Schwartz.
Esse pequeno guia foi tomando proporções cada vez maiores. O
que, inicialmente, seria feito por alunos de iniciação científica da USP, ao
longo dos anos tomou forma de uma vultosa enciclopédia.
— Acho que é um volume que se abre em várias direções.
Usamos uma linguagem didática, com o objetivo de levar até Borges mesmo quem
não o leu. Com isso, é possível entrar na cabeça dele. Você pode ver a
imaginação do Borges em três dimensões nos verbetes, algo que não seria
possível de outra maneira — argumenta o editor.
E mesmo sendo acessível ao público iniciante, o livro
recompensa fãs mais dedicados. Feito por especialistas, com profundidade e
bibliografia extensa sobre estudos do autor, “Borges babilônico” conta com
verbetes próximos a ensaios, que dão uma visão aprofundada de temas recorrentes
na obra do argentino, como Tempo, Valentia e Matemática.
Tratando-se de Borges, que declarou que via nas bibliotecas
o seu paraíso, não surpreende constatar a importância das leituras para
entender a mente do escritor. Mas o que “Borges babilônico” revela são também
as suas outras paixões. A história da república Argentina, o cinema de faroeste
que o emocionava, as ruas de Buenos Aires pelas quais se apaixonou.
Através da enciclopédia, é possível traçar um mapa afetivo
de todas as fases do autor. Desde seu começo ultraísta (corrente literária de
vanguarda surgida em Madri) até o fim da vida, em que se tornou um orador
reconhecido, os diversos Borges são contemplados pelos verbetes.
Listando as mais de 500 personagens no volume, surgem
diversas das idiossincrasias de Borges, que, por exemplo, cita 95 britânicos,
que é o mesmo número de argentinos, os dois polos de referência do escritor
que, apesar de ter lido na maior parte escritos do século XIX, traz dezenas de
pensadores e escritores da Antiguidade clássica para seus textos.
Vê-se o Borges fascinado pela literatura inglesa, que
mergulhava nas aventuras de Robert Louis Stevenson e nos contos policiais de
Edgar Allan Poe na mesma medida em que estudava clássicos elizabetanos como
Shakespeare, Marlowe e Ben Jonson. Também está lá o Borges erudito, que
conheceu como poucos a filosofia, a ciência e o misticismo do islamismo e do
judaísmo na Península Ibérica. Que foi arrebatado em sua adolescência pela
leitura das “Mil e uma noites”, o que rendeu um fascínio de vida toda pelo
Oriente.
E ainda o autor que, na velhice e já cego, resolveu estudar
a língua anglo-saxã e sabia de cor passagens das sagas medievais islandesas. Um
literato profundamente consciente de seu tempo, que verteu ao castelhano
contemporâneos da estatura de Virginia Woolf e Franz Kafka, um autor que
admirava profundamente.
Apesar da erudição e da curiosidade implacáveis, uma
ausência notável se dá no mapa de referências de Borges: a América do Sul. Para
além do Uruguai e da própria Argentina, os países do continente só recebem
menções passageiras em suas páginas. O verbete sobre o Brasil, escrito pelo
próprio Schwartz, mostra como o vizinho recebe atenção “marginal” e, com
exceção da região fronteiriça dos pampas, é basicamente ignorado. Entre os
centenas de escritores citados por Borges, há apenas um brasileiro: Euclides da
Cunha, autor de “Os sertões”.
— A geração dele, assim como a dos nossos (modernistas) do
mesmo período, era muito voltada para a Europa, especificamente Paris. Na
época, os livros não transitavam muito. Mas Borges está profundamente arraigado
na história da Argentina, em suas guerras de independência — explica o
organizador.
As figuras míticas da Argentina, de fato, fizeram parte
constante da imaginação do escritor. Descendente de militares, ele sempre
demonstrou carinho pela cultura de seu país, em especial um componente que lhe
parecia associado a um passado cada vez mais distante: os gaúchos e os homens
da fronteira, o tango e a milonga.
Ainda que fale muito da Argentina dos campos, dos subúrbios
e das províncias, Borges nunca se desvencilha de sua cidade, Buenos Aires. Não
à toa, seu primeiro livro é uma coleção de poemas em homenagem à capital
portenha. Borges é fascinado pela cidade que conheceu quando criança e que se
encontrava em processo de mudança incontrolável quando a ela retornou, já
adulto. A cidade cujas ruas chamou de “entranhas de minha alma” lhe fascinava.
Como diz Beatriz Sarlo, em seu verbete sobre a cidade, para ele, “ser das
margens é um destino que pode impor-se como limitação, mas também aceitar-se
como qualidade original”. Qualidade essa que sempre fecundou nas páginas de
Borges.
ESCRITOR DE MÚLTIPLOS
INTERESSES
“Talvez, no futuro, alguém, uma mulher que ainda não tenha
nascido, sonhe que recebe a memória de Borges, como Borges sonhou que recebia a
memória de Shakespeare”.
Assim Ricardo Piglia finaliza seu verbete sobre Memória, um
dos diversos na enciclopédia que não apenas esquadrinham os livros, mas também
abrem uma janela para entender a jornada e personalidade do autor.
E na memória dessa mulher, ainda não nascida, constariam as
visitas de Borges ao Brasil, episódios pouco conhecidos na biografia do autor e
que recebem menções no volume. Foram duas, ambas em São Paulo. A primeira, em
1970, quando veio receber um prêmio na Bienal do Livro. Já na segunda, em 1984,
dois anos antes de sua morte, acompanhado de sua esposa Maria Kodama, deu
palestras para o público brasileiro que lotou salões e até mesmo um
estacionamento em busca de uma oportunidade de ouvir o velho escritor.
“Borges babilônico” é recheado desses e outros episódios,
que mostram pequenos detalhes na biografia do escritor. Através dos verbetes,
por exemplo, é possível conhecer a família Borges e suas raízes que datam da
independência argentina. São figuras como seu avô, Francisco Borges, que lutou
ao lado de Bartolomeu Mitre, ou sua irmã, Norah, uma artista que ilustrou a
capa de “Fervor de Buenos Aires” (1923), primeiro livro de poesia do autor.
Seus muitos amigos também povoam as páginas da enciclopédia,
e não apenas aqueles com quem teve parcerias notórias, como Bioy Casares
(1914-1999) e Silvina Ocampo (1903-1993). A enorme estatura de Borges nas
letras argentinas, e sua disposição de comentar o que se passava na cultura de
seu país, fez com que o autor colecionasse grandes admiradores e também
profundas divergências com colegas. Foi o que aconteceu com Ernesto Sabato
(1911-2011), outro importante autor argentino, com quem Borges chegou a debater
publicamente, como explicado no verbete escrito por Juliano Gouveia dos Santos.
Outra estrela, Júlio Cortázar (1914-1984) teve ajuda de
Borges para publicar em uma revista seu primeiro conto, “Casa tomada”, abrindo
as portas do mundo literário portenho para o então jovem autor. Mundo esse de
que Borges foi parte intensa, tendo encabeçado revistas como “Proa” e “Prisma”,
e participado de diversas outras como as revistas “Sur”, fundada por sua amiga
Silvina Ocampo, e a “Martin Fierro”. Dessa última, Borges se desligou após uma
divergência política, outro aspecto importante da vida do autor que é explorado
com profundidade no volume.
Dono de um universo de imagens próprias e esmiuçado em suas
obras, Borges também foi um cidadão do mundo. Além da Argentina, onde nasceu e
passou boa parte da vida, ele viveu na Espanha e em Genebra, na Suíça, aonde
voltou na velhice e disse se sentir “misteriosamente feliz”. São dois momentos
cruciais na formação do jovem Borges, pois em sua educação suíça foi
apresentado aos clássicos franceses, e, em Madri, às vanguardas europeias que
levaria a Buenos Aires, provocando uma verdadeira revolução literária.
Um dos verbetes mais curiosos é o escrito pelo próprio
Borges. Trata-se de um texto para a “Enciclopédia sudamericana” a ser publicada
em Santiago do Chile no ano de 2074, e que trata da vida de um Jorge Francisco
Isidoro Luis Borges.
Nele, fala de suas preferências — “a literatura, a filosofia
e a ética” — e o fato de “nunca (ter) terminado de apreciar as letras
hispânicas”. Conta que, como professor universitário, “nunca formulou uma
pergunta nos exames (...) não exigia datas (...) e abominava as bibliografias”.
Compartilha preocupações, como a de que um dia “o
declarassem um impostor ou embusteiro ou uma singular mistura de ambos”, e
aspirações, do “desejo de tramar a mitologia de uma Buenos Aires que nunca
existiu”.
E ainda destaca uma frase de Thomas Carlyle, escritor
inglês: “a história universal é um texto que somos obrigados a ler e a escrever
incessantemente e no qual também nos escrevem”.
É impossível subestimar a importância dos livros na vida de
Borges, que chegou a dizer que “se tivesse de indicar o evento principal de
minha vida (...) diria que é a biblioteca de meu pai. Na realidade, creio nunca
ter saído dessa biblioteca. É como se ainda a tivesse vendo”.
E, aos livros, são indissociáveis esses dois elementos: as
bibliotecas e a visão.
As primeiras o fascinaram a vida toda. Apareciam em seus
escritos com constância, e deram nome a um de seus contos mais famosos, a
“Biblioteca de Babel”, que pode ser lido no livro “Ficções”.
Para além disso, foram espaços não apenas de descobrimento,
mas locais de trabalho em dois momentos opostos de sua vida.
Na juventude, esteve na Biblioteca Municipal Miguel Cané, um
emprego que detestou, e, na velhice, foi diretor da Biblioteca Nacional da
Argentina. Neste caso, um sonho realizado e limitado justamente pela visão.
Borges, que teve histórico familiar de cegueira, padeceu do
mal no fim da vida. Com uma visão que se degenerou ao longo dos anos, o
escritor sempre trouxe o assunto em suas obras. Mas talvez o momento mais
emblemático tenha sido quando assumiu a enorme Biblioteca Nacional, local que o
fascinou enormemente na infância e serviu de base para algumas de suas
primeiras leituras.
Lá, tornou-se o terceiro diretor cego, depois de José Marmol
e Paul-François Groussac. E escreveu um de seus poemas mais famosos, que
mostram seu profundo apreço pelas contradições e duplicidades: “Ninguém rebaixe
a lágrima ou rejeite/ esta declaração de maestria/ de Deus, que com magnífica
ironia/ deu-me a um só tempo os livros e a noite”.
Fuente : Jornal O Globo
- Brasil
No hay comentarios:
Publicar un comentario